segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA: UMA TRAJETÓRIA INACABADA

Refletir sobre as políticas públicas, em particular àquelas denominadas de políticas sociais em uma sociedade capitalista, remete a necessidade de termos que compreender que essas políticas apresentam em sua constituição uma complexidade histórica, já que surgem em uma íntima relação com as características históricas de cada realidade social em que emergem.
É por isso que devemos localizar as políticas públicas em uma contextualização, haja vista que resultam de forças históricas contraditórias. Portanto, a forma e o conteúdo das políticas públicas estão diretamente associados a conjugação de fatores estruturais e conjunturais de cada processo histórico de um determinado país.

Desta forma, a particularidade mais comum nas políticas sociais, independente no país que são formuladas, é que nascem no cerne de um conflito econômico-político e social em que as contradições sociais se avolumam ao ponto de gerarem uma mudança na estratégia adotada pelos governos para manterem a sua governabilidade.
Isto quer dizer que as políticas sociais têm em comum um marco histórico que identifica o seu registro de nascimento. Um marco que sinaliza uma conjuntura social em que os conflitos sociais não podem mais ser enfrentados unicamente com os instrumentos tradicionais para a solução das questões sociais: as ações repressivas.

A história econômica, política e social de cada país desenha o momento em que as políticas sociais passam a ser adotadas como estratégia de governabilidade. Assim, as políticas sociais adquirem a coloração específica das conjunturas históricas de cada país. Por isso mesmo, a forma como as políticas sociais foram implantadas e operacionalizadas no Brasil tem o seu desenho próprio.

É por isso que as políticas públicas em nosso país já tiveram uma marca explicitamente repressiva. O Estado atuava junto a sociedade como aquele que tinha que garantir a ordem e a paz social. A implicação desta conotação é de que as políticas públicas eram organizadas a partir de uma total desconsideração das questões sociais que assolavam a  realidade nacional.
Por outro lado é o próprio processo histórico que faz com que o papel das políticas públicas mude, haja vista as inúmeras lutas sociais que colocaram, e ainda colocam em cheque as ações repressivas como estratégia para o enfrentamento da chamada questão social.

Com efeito, a questão social, constituída em torno do pauperismo e da miséria das massas, representou o fim de uma concepção idealista de que a sociedade, por si só ou, quando muito, acossada pela polícia, pudesse encontrar soluções para os problemas sociais. Constatada a falácia dessa concepção, impôs-se outra, apoiada na necessidade do sistema liberal-burguês de responder, por meio da regulação estatal efetiva e ampliada, os efeitos diruptivos da questão social (PEREIRA, 2002 p.31).

É a partir desse momento  histórico que o Estado passa a assumir uma característica em especial, o seu papel regulador, ou seja, passa a intervir diretamente nas questões de natureza econômica, política e social da sociedade para manter a sua legitimidade. Isto evidencia outra característica comum nas políticas sociais que é destacada porBehring (1998), uma vez que passaram a integrar “a estratégia global anticrise do capital após 1929” (p.168). Isto quer dizer que as políticas sociais foram adotadas nos países capitalistas como parte de uma estratégia de superação das crises cíclicas do capital.

É assim que as políticas públicas, especialmente as políticas sociais, se tornaram importantes estratégias na manutenção das relações de poder que o Estado representa. Por isso mesmo Galper (1986) destaca que as políticas sociais nos países de Estado de Bem Estar tem duas funções básicas, uma função econômica já que os recursos gastos nas políticas sociais contribuem para a manutenção das taxas de lucro do capital, e uma função de legitimação, uma vez que mantém uma imagem de preocupação do Estado com os interesses da classe trabalhadora e assim garantem a conservação do controle social.
Mais próximo da contemporaneidade podemos destacar uma série de medidas políticas, econômicas e sociais adotadas pelo governo brasileiro, que desde adécada de 90 tem repercutido significativamente na forma e no conteúdo das políticas públicas: as medidas neoliberais do Consenso de Washington da ampla abertura comercial; da desregulamentação dos fluxos financeiros; da privatização das empresas estatais; da ampla reforma administrativa do Estado (para acabar com estabilidade no emprego público e para abrir os serviços públicos a iniciativa privada); e da reforma dos direitos sociais. 
 Essas medidas têm gerado fortíssimos reflexos no conjunto dos direitos sociais reconhecidos pela constituição federal de 1988, pois se constituíram em uma nova investida do capital no momento em que outra crise cíclica atingia o sistema. Aa solução encontrada para manter a lucratividade exigia, entre outras coisas, o desmonte dos sistemas de bem estar social que, segundo os neoliberais, eram os grandes responsáveis pelos gastos públicos e as crises fiscais que os Estados passavam. Assim, “a reestruturação produtiva vem sendo conduzida em combinação com o ajuste neoliberal, o qual implica a desregulamentação de direitos, o corte dos gastos sociais, deixar milhões de pessoas à sua própria sorte e ‘mérito’individuais” (BEHRING, 1998 p.180).
 
Nesse conjunto de elementos contemporâneos, as políticas sociais são taxadas ideologicamente como políticas paternalistas que não contribuem para a autonomia do indivíduo e impedem o estabelecimento de uma “saudável desigualdade” geradora de uma “necessária concorrência” (SADER e GENTILI, 1995). Desta forma:

A política social entra no cenário como paternalismo, como geradora de desequilíbrio, como algo que deve ser acessado via mercado, e não como direito social. Daí as tendências de desresponsabilização e desfinanciamento da proteção social pelo Estado, o que, aos poucos, vai configurando um Estado mínimo para os trabalhadores e um Estado máximo para o capital (BEHRING, 1998 p.186).
Como conseqüência, as políticas sociais assumem a orientação da focalização enquanto finalidade de ação, o que reforça o deslocamento do princípio da universalização dos direitos inscrito da CF de 1988. O resultado direto do conjunto de forças que atacam e destroçam as políticas sociais no Brasil é a instituição de uma compreensão e uma conduta passiva que gradativamente aceita a argumentação de que grande parte dos serviços públicos deveria “ter como clientela somente as camadas mais pobres da população, que encontram-se desorganizadas e possuem uma pequena capacidade de pressão política” (ARAÚJO, 1998 p.23).

É a consolidação de uma cultura que acredita que os serviços públicos devem ser destinados para os pobres. Essa cultura corrobora com as ações políticas do neoliberalismo que destina parte significativa da população para os serviços privados.

Esse panorama cria aquilo que Sposati (1995) chama de inclusão excludente, ou aquilo que Albuquerque (1986) refletindo sobre o poder em instituições chama de reconhecimento e desconhecimento. Esses binômios expõem que o reconhecimento do usuário como sujeito de direitos no momento que ele é incluído em serviços públicos descartáveis, de péssima qualidade, ou por meio do processo imputador de uma ressocialização virulenta junto ao usuário, na realidade, acaba excluindo o cidadão atendido de sua condição política enquanto cidadão e também gera um desconhecimento de sua expressão inteira como ser humano, pois passa a ser identificado e reconhecido a partir de sua carência social ou de um número identificador do atendimento recebido.

É no percurso das mudanças da forma e do conteúdo das políticas públicas que podemos encontrar pistas ao mapeamento da construção efetiva da cidadania. Isso ocorre porque a mudança e ampliação/diminuição das políticas públicas está diretamente associada a mudança e ampliação/diminuição do próprio conceito de cidadania.

Para Campos (2001 p. 13) a cidadania significa o “conjunto e a conjugação de direitos civis, sociais e políticos assegurados aos membros de uma determinada sociedade. Tais direitos adquirem efetividade através do exercício das liberdades individuais, da participação política e do acesso a bens de consumo e à proteção social pública”.

Isto quer dizer que a medida que a cidadania vai sendo expandida ou diminuída em decorrência do conjunto das lutas sociais, é possível encontrar uma estreita relação com a expansão ou diminuição das políticas públicas, uma vez que o reconhecimento de direitos de cidadania implica em uma correlação direta com a organização, a sistematização e a implementação das políticas públicas pelo Estado.

É por isso que as políticas sociais são “o conjunto de ações públicas, governamentais ou não, destinadas à satisfação de necessidades coletivas. Estas ações públicas integram o elenco de estratégias utilizadas pelo Estado com vistas à reprodução da força de trabalho e a preservação de ordem sócio-econômica e política vigente”(CAMPOS, 2001 p. 13).

Assim, a compreensão da complexa relação entre as políticas públicas e a cidadania é muito importante, pois “embora o Estado não seja condição suficiente para a emergência e consolidação de um determinado padrão de cidadania, somente a esfera pública tem se revelado, historicamente capaz de reduzir os impactos competitivos do mercado” (CAMPOS, 2001 p.13), pois as lógicas que orientam o mercado e a cidadania são ao mesmo tempo distintas e conflitantes.

Isto quer dizer que aceitar as idéias que defendem que o cidadão pode e deve encontrar no mercado os meios para a sua reprodução social é, no mínimo, uma posição ingênua. A cidadania é um produto construído em um ambiente contraditório em que a organização social e a participação cidadã são fundamentais para o reconhecimento e a legitimação dos indivíduos enquanto cidadãos. É por isso que deve ser vistas com muita reserva as adjetivações dadas constantemente para o cidadão, como por exemplo, o de cidadão consumidor, uma vez que estas qualificações tendem a destituir o caráter político que está contido no cerne do conceito de cidadão e de cidadania.

Devemos então perguntar: qual é o ambiente que nutre e alimenta a própria cidadania e, por correspondência fortalece o papel do cidadão no controle das políticas públicas? Obviamente que esse lugar é o ambiente democrático. Isto quer dizer, que um ambiente democrático tem um grande efeito sobre a constituição de um Estado de direitos, que por princípio, se organiza para atender as necessidades sociais das maiorias sociais. É por isso que os direitos sociais são aqueles que “representam a via por meio da qual a sociedade penetra no Estado, procurando: conhecê-lo, controlá-lo e interferir na sua estrutura administrativa, nos seus processos de legitimação e regulação, nas suas prioridades e objetivos” (PEREIRA, 2002 p.34).

Não obstante o processo de conquista dos direitos cidadãos não é homogêneo e linear, o que faz com que o reconhecimento da cidadania nem sempre ocorra sob a perspectiva da universalidade. É assim que, na história dos direitos de cidadania no Brasil, “muitos dos direitos sociais foram implantados através de um viés corporativista, visando atender as demandas dos segmentos mais organizados dos trabalhadores e com maior capacidade de pressão política, e, portanto, não se tornaram universais” (ARAÚJO, 1998 p. 22).
A força do corporativismo nas políticas sociais brasileiras deixou muitas cicatrizes, uma vez que tendeu a deslocar a questão da universalidade dos direitos sociais. Uma vez deslocada a questão da universalidade, as políticas sociais organizadas para operacionalizar direitos sociais puderam assumir configurações e formatações de menor alcance, com qualidade questionável e com uma fragmentação irresponsável.

É isso que fez com que Sposati (1995) afirmasse a existência do componente “assistencial, como mecanismo presente nas políticas sociais” (p.30). O componente assistencial presente nas políticas sociais desloca o direito e reitera o usuário como assistido, beneficiário, ou favorecido. Isso quer dizer, que o cidadão, neste formato de política social, não é reconhecido como tal, mas como um indivíduo que tende a receber um serviço público sem reconhecê-lo como direito, como público.
Desta forma, “a existência formal de direitos não garante a existência de um espaço público” e de uma “sociabilidade política que a prática regida pela noção de direitos é capaz de criar” (TELLES, 1999 p.71). Ou seja, o reconhecimento formal do direito, a despeito de sua relevância e importância não é condição suficiente para a sua efetivação. Especialmente quando somos uma nação em que a presença do autoritarismo fincou raízes fortes na imagem individual e coletiva de um Brasil (CHAUÍ, 2001) que se aquiesce e se submete as várias ações governamentais depreciativas dos direitos dos cidadãos.

Por isso, o caminho que vai do direito formal a efetivação deste pode ser entrecortado com atalhos e desvios que acabam confiscando o direito social, seja porque os instrumentos construídos para dar operacionalidade ao direito (leis, decretos, burocracia institucional, procedimentos operativos, e outros) podem dificultar o acesso em vez de torná-lo exeqüível, seja porque o campo institucional em que o direito é operacionalizado pode formar um processo de ressocialização em que a sociabilidade realizada pelo usuário acaba submetendo-o conformadamente ao poder avassalador da instituição para que ele não perca o “direito” ao serviço oferecido.

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